outubro 28, 2006

Piuí.

Piuí.

Arthur nunca chegou a voltar para casa.
Sabia que a pior parte chegaria em alguns instantes, restando-lhe apenas alguns segundos para que sua vida fosse completamente revista, desde o nascimento até agora. Um cheiro cinzento entrava pela pequena fresta na janela traseira, o crucifixo, pendurado no espelho retrovisor, balançava agitadamente, como em uma suplicante negação. Escutava ao longe um suave apito. Era o aviso.
O aviso de que o fim estava próximo e não havia mais como voltar atrás, se quisesse sair, era preciso sair do transe que aquele som lhe provocava, o que era impossivel em tal momento.

Olhava para o crucifixo e via a sua vida inteira de mentiras, precisava livrar-se das provas, e ele era a prova, as esmolas que recebera não valiam mais, não passavam de mais mentiras, tudo parecia tão irreal, já não tinha noção da verdade, só sabia que a prova devia completar-se para que o mundo pudesse viver com menos um sacana.

O apito ficava mais forte a cada segundo, a cada segundo... nada pararia aquela fúria que corria continuamente, com seu som agudo e seu rastro cinzento. "Check, check... Piuí!" Dizia, como num aviso. Nada o faria parar, nada o impediria de continuar. Passaria por cima de qualquer um, se fosse preciso.

E Arthur não podia suportar quelhe passassem por cima. Por isso tinha escolhido este como seu fim.
Mas não podia. Simplesmente não podia. Não conseguia imaginar-se sendo esmagado em seu carro, em meio aquela lataria de luxo, não suportava a idéia das grandes rodas de aço esmagando seu crânio como uma frágil esfera de vidro.

Por isso, Arthur girou a chave na ignição, deu a partida, acelerou, e foi para bem longe dali.

O apito veio e foi, como sempre, imponente, gritante, esperando por um obstáculo para esmagar e purificar.

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